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terça-feira, 7 de março de 2023
O Dia Internacional da Mulher e o Índice de Desigualdade de Gênero, artigo de José Eustáquio Diniz Alves
A equidade de gênero ainda não foi alcançada e garantir igualdade de oportunidades entre os sexos é a grande meta para o século XXI
“Ou nenhum indivíduo da espécie humana tem verdadeiros direitos, ou todos têm os mesmos;
e aquele que vota contra os direitos do outro, seja qual for a sua religião,
cor ou sexo, desde logo abjurou o seu próprio”
Marquês de Condorcet (1743-1794)
“A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem.
As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum”
Olympe de Gouges (1748-1793)
“O grau de emancipação das mulheres é o termômetro através do qual
se mede a emancipação de toda a sociedade”.
Charles Fourier (1772-1837)
O Dia Internacional da Mulher é uma data de reflexão e um momento de rememorar o luto e a luta do sexo feminino contra a exploração, a opressão, a escravidão, a violência, a guerra, a pobreza, a destruição da natureza, a superstição, a ignorância, a heteronomia, a iniquidade, o fracasso, o preconceito, o obscurantismo, o fatalismo e a favor da paz, da harmonia, da liberdade, da educação, da ciência, da tecnologia, da simpatia, da empatia, da solidariedade, da pluralidade, da autonomia, da diversidade, da saúde, dos direitos sexuais e reprodutivos, do amor, do progresso, do sucesso, do bem-estar e do compartilhamento respeitoso do espaço terrestre com todos os seres vivos do Planeta.
O Dia Internacional da Mulher é uma data de celebração da plena cidadania e faz parte do escopo dos direitos humanos, cuja referência máxima é a Revolução Francesa, principal marco político da modernidade, que inspirou os ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e abriu espaço para o surgimento de um movimento feminista contra a subjugação das mulheres e pela igualdade de direitos entre os sexos, como mostra as três citações acima de eminentes figuras do feminismo francês.
Muita coisa mudou no mundo e no Brasil nos últimos 230 anos, desde a queda da Bastilha. A expectativa de vida aumentou muito e as mulheres vivem mais do que os homens na maioria absoluta dos países. Houve avanços significativos na educação, nas condições de moradia, na inserção feminina no mercado de trabalho, no acesso aos meios de regulação da fecundidade, no direito de voto, nos direitos de cidadania e na participação feminina nos espaços de poder.
De modo geral, as mulheres tiveram inúmeras conquistas nos últimos dois séculos, embora ainda haja muita desigualdade de gênero nos quatro cantos do Planeta.
O Brasil sempre apresentou grandes iniquidades de gênero, uma vez que as mulheres brasileiras eram relegadas à condição de cidadãs de segunda classe. No período colonial, a economia de base agrária e primária, tinha como fundamento a grande propriedade rural, a mão de obra escrava, a família tradicional, o analfabetismo, o patrimonialismo, além de estruturas hierarquizadas e pouco democráticas de poder.
Esta estrutura pouco diversificada e excludente não oferecia autonomia e nem oportunidades de emprego extra doméstico para a grande maioria das mulheres. A cidadania feminina era restrita. O Código Civil de 1916 consolidou, na lei, a superioridade e a preeminência masculina, definindo o marido como chefe da sociedade conjugal (Pátrio Poder), além de legitimar os princípios de uma sociedade androcêntrica e patriarcal.
Todavia, a aceleração do processo de urbanização, industrialização e modernização, a partir da chamada Revolução de 1930, possibilitaram que as mulheres brasileiras conquistassem diversas vitórias nas mais diferentes esferas sociais.
Nas últimas décadas, o progresso das mulheres ocorreu em diferentes níveis: obtiveram o direito de voto em 1932; passaram a ser maioria da população a partir da década de 1940; atingiram a maioria do eleitorado em 1998; reduziram as taxas de mortalidade, elevaram a esperança de vida e já vivem, em média, sete anos acima da média masculina; ultrapassaram os homens em todos os níveis educacionais; aumentaram as taxas de participação no mercado de trabalho, diminuíram os diferenciais salariais e são maioria da População Economicamente Ativa (PEA) com mais de 11 anos de estudo; conquistaram duas das três medalhas de ouro do Brasil nas Olimpíadas de Pequim (2008) e Londres (2012); são maioria dos beneficiários da previdência e dos programas de assistência social, conquistaram a igualdade legal de direitos na Constituição de 1988 e obtiveram diversas vitórias específicas na legislação nacional; inclusive, chegaram à presidência do Supremo Tribunal Federal (Ellen Gracie em 2006) e à presidência da República (Dilma Rousseff nas eleições de 2010 e 2014).
Indubitavelmente, as mulheres brasileiras reduziram as desigualdades de gênero e até reverteram a desigualdade em alguns casos, como no campo da educação. Mas a equidade de gênero ainda não foi alcançada e garantir igualdade de oportunidades entre os sexos é a grande meta para o século XXI.
Todavia, qual é o tamanho absoluto e relativo das desigualdades de gênero no Brasil, quando comparado com outros países?
O Fórum Econômico Mundial, organização que realiza encontros anuais em Davos (Suíça) e que reúnem empresários e líderes de todo o mundo, elabora desde 2006 um indicador que busca agregar as diferentes dimensões da desigualdade de gênero. A tabela abaixo apresenta os resultados do relatório Global Gender Gap Report 2022 (com dados de 2021). Para uma lista de 146 países, o Brasil encontra-se em 94º lugar. Além de estar em uma posição vergonhosa, o Brasil está piorando no ranking, pois já esteve em 62º em 2013 e 90º em 2017. Mas será, de fato, que o país está em uma posição tão ruim assim?
O Índice Global de Desigualdade de Gênero (GGGI) varia de zero (total desigualdade) a um (total igualdade). Liderando o ranking, com a menor desigualdade de gênero, está a Islândia (1º lugar) com 0,908, seguido da Finlândia (2º lugar) com 0,860 e da Noruega (3º lugar) com 0,845 ponto. Na frente do Brasil ficaram, por exemplo, Ruanda (6º lugar), com índice de 0,811; Nicarágua (7º lugar), com 0,810 e Namíbia (8º lugar), com 0,807 ponto. Estes três países aparecem à frente, inclusive, da França (15º lugar, com 0,791) e dos Estados Unidos (27º lugar, com 0,769 ponto).
Mas será que esta posição brasileira no ranking global do GGGI reflete a real situação de gênero no país? Por exemplo, a desigualdade de gênero no Brasil (94º lugar, 0,696 ponto) é realmente muito pior do que a situação de Burundi (24º lugar, com 0,777 ponto)?
Vejamos. De acordo com os dados da Divisão de População da ONU, a expectativa de vida ao nascer, em 2023, é de 73,1 anos para os homens e de 79,5 anos para as mulheres (uma diferença de 6,4 anos a favor do sexo feminino). Em Burundi, os números são 60,5 anos para os homens e 64,4 anos para as mulheres (uma diferença de 3,9 anos). Portanto, o nível e a desigualdade são maiores no Brasil, mas a favor das mulheres.
Índice global de desigualdade de gênero
Índice global de desigualdade de gênero
Porém, o Global Gender Gap Index (GGGI) não leva em consideração as desigualdades reversas. Ou seja, quando as mulheres apresentam melhores indicadores do que os homens o GGGI só considera a existência de uma igualdade, atribuindo índice 1, como se houvesse paridade de gênero e não vantagem pelo lado feminino.
Evidentemente esta maneira de abordar as desigualdades de gênero não é capaz de retratar a realidade das relações entre homens e mulheres e reduz o indicador dos países em que as mulheres avançaram com maior rapidez na obtenção de direitos e condições de vida. O Brasil cai bastante nesta metodologia do GGGI, pois apesar das mulheres brasileiras terem uma esperança de vida de 15,1 anos superior às mulheres do Burundi (23% superior), o índice relativo à saúde e sobrevivência é de 0,980 no Brasil contra 0,979 em Burundi (apenas 0,1% superior).
No quesito educação os problemas são ainda maiores. Segundo dados da UNDP, os anos médios de estudo no Brasil são de 8,3 anos para as mulheres e de 7,9 anos para os homens. As mulheres brasileiras estão à frente dos homens. No Burundi, os anos médios de estudo são 2,5 anos para as mulheres e 3,9 anos para os homens, que estão à frente das mulheres. As mulheres brasileiras possuem anos médios de estudo 3,3 vezes superior do que a escolaridade das mulheres burundianas. Porém, o GGGI apresenta um índice relativo à educação de 1,000 para o Brasil e de 0,927 para Burundi (8% a mais para o Brasil). Adicionalmente, o índice não levou em consideração que houve reversão do hiato de gênero na educação brasileira nas últimas décadas no Brasil e este hiato está aumentando em favor das mulheres até mesmo na pós-graduação.
A renda per capita (em poder de paridade de compra, para 2017) no Brasil era de $ 17.960 para homens e de $ 10.903 para as mulheres. Em Burundi era de $ 797 para os homens e de $ 668 para as mulheres. Porém, o GGGI apresenta um índice relativo à participação e oportunidades de 0,855 em Burundi e de 0,669 para o Brasil. Ou seja, as mulheres brasileiras possuem uma renda per capita 16 vezes maior do que a renda das mulheres burundianas, mas estão atrás no indicador do GGGI.
Além disto, a situação da previdência social é completamente diferente nos dois países. No Brasil as mulheres são maioria dos beneficiários da previdência social, embora não sejam maioria da população economicamente ativa. Portanto, o sistema de proteção social no Brasil, mesmo com todos os defeitos, é muito melhor do que em Burundi. As mulheres brasileiras possuem mais direitos sociais e trabalhistas do que as suas contrapartes do Burundi. Mas o GGGI apresenta o Burundi com melhores indicadores de gênero, mesmo não levando em consideração a qualidade do trabalho que as mulheres desempenham. O fato de o GGGI não levar em consideração a cobertura previdenciária é um problema metodológico sério e que distorce a análise da participação econômica entre os países.
No quesito participação política, o GGGI apresenta um índice de 0,345 para o Burundi e de apenas 0,136 para o Brasil. De fato, em 2021, a participação das mulheres na Câmera dos Deputados era de apenas 15% no Brasil e de 38% no Burundi. Isto explica o baixo índice brasileiro e mostra o atraso que o Brasil possui no quesito de participação parlamentar. Evidentemente, esse indicador puxa muito para baixo o índice brasileiro, embora não possa ser superestimado.
Os exemplos acima mostram que, em geral, as mulheres brasileiras possuem muito mais direitos de cidadania do que as mulheres (e também os homens) do Burundi. Contudo, a falta de direitos de uma renda decente e de um nível mínimo de matrícula educacional no Burundi, não foi obstáculo para que o país apresentasse indicadores de gênero de melhor nível. Portanto, quando o GGGI diz que o Burundi está bem posicionado, em 24º lugar no ranking de desigualdade de gênero, pode parecer que a situação de suas mulheres é de maior autonomia. Contudo, os dados mostram que tanto homens quanto mulheres no Burundi carecem dos direitos humanos elementares.
Já no Brasil, pode parecer que a posição 94º do ranking do GGGI signifique que as mulheres brasileiras possuem menor autonomia. Contudo, o sexo feminino no Brasil tem superado os homens na saúde, na educação e no acesso à previdência. Tem avançado no mercado de trabalho e já são maioria da população economicamente ativa com mais de 11 anos de estudo.
Mesmo faltando muito para se avançar na construção de uma sociedade com maior equidade de gênero, a situação das mulheres brasileiras é muito melhor do que a situação das mulheres do Burundi, mas isto não está refletido nos indicadores do Global Gender Gap Index. Sabemos que o GGGI busca analisar as desigualdades de gênero independentemente dos níveis de desenvolvimento dos países, mas as conquistas femininas absolutas não podem ser subestimadas.
Para qualquer pessoa, minimamente informada, parece evidente que as situações de desigualdade de gênero não são piores no Brasil e na França em relação a países como Namíbia, Ruanda, Nicarágua e Burundi. O problema reside na metodologia utilizada no GGGI e na forma de utilização dos dados dos diferentes países.
No relatório do Global Gender Gap Index está explicitado o seguinte: “O Índice é projetado para medir hiatos de gênero no acesso a recursos e oportunidades em cada país em vez de níveis reais dos recursos disponíveis e oportunidades. Fazemos isso para tornar o Global Gender Gap Index independente dos níveis de desenvolvimento dos países”. Isto quer dizer que o índice está buscando medir a desigualdade (hiato) e não o nível de desenvolvimento ou a situação dos direitos econômicos, sociais e políticos.
A questão com esta estratégia metodológica é que um país com enorme exclusão social para os dois sexos e totalmente carente em termos econômicos, políticos e de qualidade de vida, pode aparecer com bom indicador de gênero, enquanto um país com maior inclusão social e com direitos humanos básicos atendidos para toda a população pode aparecer em posição ruim no ranking se houver diferenças relativas entre os sexos.
Desta forma, há de se questionar a validade deste índice de desigualdade de gênero do Fórum Econômico Social, pois o que a metodologia do GGGI apresenta em seu indicador sintético é uma comparação entre alhos e bugalhos.
O mundo precisa de maior equidade de gênero e também precisa de melhores indicadores das desigualdades sociais entre homens e mulheres.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Homens pioneiros do feminismo e da luta pela equidade de gênero, Ecodebate, 28/02/2018
https://www.ecodebate.com.br/2018/02/28/homens-pioneiros-do-feminismo-e-da-luta-pela-equidade-de-genero-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
WEF. Global Gender Gap Report 2022, 13 July 2022
https://www.weforum.org/reports/global-gender-gap-report-2022/
ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI, Escola de Negócios e Seguro (ENS), maio de 2022. (Colaboração de Francisco Galiza). Acesso gratuito em: https://ens.edu.br:81/arquivos/Livro%20Demografia%20e%20Economia_digital_2.pdf
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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