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quarta-feira, 13 de março de 2019

O incerto destino da conversão de multas ambientais

por Suely Araújo*[1] e Fabio Feldmann*[2]
A institucionalização de regras consistentes para disciplinar a conversão de multas em serviços ambientais foi com certeza um dos maiores avanços na política ambiental nos últimos anos. Prevista desde 1998 em um parágrafo da Lei de Crimes Ambientais (LCA), a conversão de multas foi aplicada esparsamente pelo Ibama, sem uma base normativa sólida, até 2012. A autarquia decidiu então pela suspensão da aplicação da ferramenta devido à ausência de critérios quanto aos serviços a serem abrangidos e pela dificuldade de monitoramento de projetos pequenos espalhados pelo país. Assim que Sarney Filho assumiu em 2016 o Ministério do Meio Ambiente (MMA) pela segunda vez, houve decisão de se retomar o debate do tema, em busca de uma nova conformação para a conversão de multas. Esse esforço levou à edição do Decreto nº 9.179 em outubro de 2017, que alterou o regulamento da LCA.
O novo quadro normativo trouxe como principal aperfeiçoamento a previsão da conversão indireta de multas. A ideia nessa modalidade é viabilizar que recursos de vários autuados possam ser direcionados a um mesmo projeto, potencializando a realização de serviços ambientais estruturantes, com escala significativa, que possam reverter a situação de degradação ambiental de regiões importantes, ou efetivamente contribuir para alterar situações críticas da política ambiental. A conversão direta de multas, com serviços prestados diretamente pelo autuado, foi mantida, mas o decreto assume a prioridade para a modalidade indireta, quando prevê um desconto maior para quem adere a esta. Na complementação do decreto mediante normativos internos, o Ibama acresceu exigências técnicas e estabeleceu que um programa com periodicidade bienal definirá diretrizes técnicas e locacionais tanto para a conversão indireta quanto para a direta, a partir de subsídios dados por Câmara Consultiva Nacional que conta com participação de representantes de órgãos públicos, de setores produtivos e da sociedade civil.
A aplicação desse quadro normativo gerou importante chamamento público para seleção de projetos no âmbito da conversão indireta, com apoio em dois eixos. O primeiro visa a recuperação de matas ciliares, nascentes e áreas de recarga de aquífero em dez sub-bacias que contribuem com mais de 70% da vazão hídrica do Velho Chico: Carinhanha (MG/BA), Urucuia, Paracatu, Abaeté, Indaiá, Alto São Francisco, Pará, Paraopeba, das Velhas e Jequitaí, no território de Minas Gerais. O segundo prevê beneficiar cerca de 5 mil famílias de baixa renda em áreas rurais no médio e baixo Parnaíba, com serviços voltados à implantação de tecnologias sociais de captação, armazenamento e gestão de água, unidades de produção agroecológica e práticas de recuperação e conservação de solo, água e biodiversidade, entre outras ações socioambientais.
O primeiro chamamento público selecionou 34 projetos desenvolvidos por associações sem fins lucrativos, e se encontra nos trâmites finais. Não se incluíram projetos de órgãos públicos nesse chamamento porque ainda está sendo discutida a maneira de repassar esses recursos para entes públicos se não há previsão orçamentária. Até dezembro de 2018, as manifestações formais de interesse dos autuados pela conversão agregavam R$ 2,8 bilhões em multas. Com o desconto de 60%, a autarquia já tem R$ 1,1 bilhão disponíveis, o que é suficiente para todos esses projetos. Esse dinheiro, de natureza privada, não é internalizado de forma alguma no caixa do Ibama ou da União, sai do autuado diretamente para conta garantidora de cada projeto que será administrada pela Caixa Econômica Federal. Apenas com os recursos da fase inicial, a conversão tem potencial de aplicar montantes maiores do que os que foram investidos em recuperação florestal em toda a existência do programa de revitalização do São Francisco. O potencial da conversão vai muito além disso, pois o Ibama possui grande passivo de multas não pagas.
Matéria da Folha de São Paulo do dia 26 de fevereiro traz notícia de mudanças estruturais na conversão de multas em serviços ambientais. Minuta de decreto preparada pelo MMA revoga os dispositivos que dispõem sobre a conversão indireta de multas. Provavelmente, a proposta vem da notória rejeição do governo atual a parcerias com a sociedade civil. Se resta alguma dúvida sobre o que ocorrerá com o primeiro e o segundo chamamento público do Ibama atualmente em curso, parece certo que se implodirá o planejamento bienal da conversão aprovado pelo Ibama para o biênio 2019/2020.
Se isso se confirmar, perdem o meio ambiente e o Brasil, que deixará de ter recursos para ações ambientais estruturantes, que jamais serão realizadas com o restrito orçamento do governo. Nunca houve instrumento com tamanho poder de alavancar recursos para ações de proteção e recuperação ambiental. A opção pela conversão direta implica uma pulverização de atuação de gerenciamento bastante complicado. Por outro lado, a opção por afastar parcerias com organizações sem fins lucrativos implica trazer para o colo do Estado demandas que ele não conseguirá atender. Esperamos realmente que o bom senso prevaleça e que não se alterem as regras que regulam a conversão de multas em serviços ambientais.
*[1]  Suely Araújo, Urbanista e advogada, doutora em ciência política, presidente do Ibama no governo Michel Temer (2016-2018).
*[2] Fabio Feldmann , Ambientalista e advogado, foi deputado federal constituinte, deputado federal por três mandatos (1986-1998) e secretário de meio ambiente do Estado de São Paulo.


(#Envolverde)

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