Depois de cinco anos de seca no Nordeste, a possibilidade de um colapso é significativa. Entrevista especial com David Ferran
Os cinco anos consecutivos de seca no Nordeste brasileiro são explicados pela presença do El Niño e pela não ocorrência do fenômeno climático La Niña, que “favorece bastante a ocorrência de chuvas” na região, diz David Ferran à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone. Segundo ele, a não ocorrência do fenômeno se deve a “uma condição de neutralidade no Oceano Pacífico” e de uma “configuração das temperaturas do Oceano Atlântico tropical”.
De acordo com o meteorologista, nos últimos cem anos “nunca houve uma sequência de cinco anos com tão pouca chuva”, e apesar do quadro atual, ainda não há como saber “se esses períodos de seca continuarão ou não nessa intensidade”. A “previsão” para o próximo ano, frisa, “é de que o Oceano Pacífico esteja com mais de 60% e 70% de chances de estar em neutralidade, ou seja, a expectativa é de que não ocorra o El Niño nem a La Niña”. Diante desse cenário, explica, “tudo pode acontecer, isto é, as chances de ter seca são iguais as chances de se ter um período chuvoso”.
Na entrevista a seguir, David Ferran menciona ainda que “praticamente todos os estados do Nordeste estão com graus avançados de severidade de seca: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e parte de Alagoas estão com secas excepcionais, e todas as demais regiões enfrentam essa seca em maior ou menor grau de severidade”. Mesmo que comece a chover daqui para frente, diz, “os reservatórios só serão reabastecidos em março. Isto é, a chance de acontecer um colapso por falta de abastecimento de água em áreas urbanas, com mais de um milhão de habitantes, é bastante significativa”.
David Ferran | Foto: www.inovagri.org.br
David Ferran é graduado em Meteorologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e mestre em Geociências pela Universidade de São Paulo. Atualmente é pesquisador da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os fatores climáticos que explicam os últimos cinco anos de seca consecutiva em parte do Nordeste brasileiro?
David Ferran – O último ano chuvoso no Nordeste foi 2011, quando ocorreu o evento La Niña, que favorece bastante a ocorrência de chuvas no estado do Ceará. Já nos anos de 2012, 2013 e 2014, durante o período chuvoso principal, que se estende de fevereiro a maio, não ocorreu o fenômeno La Niña, porque houve uma condição de neutralidade no Oceano Pacífico, ou seja, a redução das chuvas, nesses três anos, foi consequência da configuração das temperaturas do Oceano Atlântico Tropical. Nos anos de 2015 e 2016, já havia a presença do El Niño, que, conhecidamente, tende a reduzir as chuvas no estado do Ceará e em grande parte do Nordeste.
Uma análise que realizamos demonstra que de 1910 até o ano de 2016, nunca, no estado de Ceará, houve uma sequência de cinco anos com tão pouca chuva. Entre 1979 e 1983 há registros de cinco anos seguidos de pouca chuva, mas nesses cinco anos foram registrados 566 milímetros de chuva. Já no período recente, de 2012 a 2016, foram registrados apenas 516 milímetros de chuva. Ou seja, nesses últimos 100 anos nunca tínhamos passado por um sequência de cinco anos com tão pouca chuva no Ceará e em grande parte do Nordeste também.
IHU On-Line – Há uma previsão ou estudo sobre a continuidade desse fenômeno de seca para os próximos anos?
David Ferran – Não existe nenhum estudo que indique se esses períodos de seca continuarão ou não nessa intensidade. Para o ano de 2017, no período chuvoso principal – de fevereiro a maio –, a previsão é de que o Oceano Pacífico esteja com mais de 60% e 70% de chances de estar em neutralidade, ou seja, a expectativa é de que não ocorra o El Niño nem a La Niña. E em anos de Oceano Pacífico neutro, durante o período chuvoso principal, tudo pode acontecer, isto é, as chances de ter seca são iguais as chances de ser chuvoso.
De 1950 até hoje, em anos de Pacífico normal, nesse período de fevereiro a maio, ocorreram 12 anos de seca, 13 anos de períodos chuvosos e 13 anos do que consideramos um estágio normal, ou seja, nessas últimas décadas houve tanto secas quanto períodos chuvosos e, por conta disso, não conseguimos fazer uma previsão em função da neutralidade prevista no Oceano Pacífico durante o período chuvoso principal.
IHU On-Line – É possível associar esses períodos de seca extrema às mudanças climáticas?
David Ferran – Não se pode provar que sim, mas também não se pode dizer que não. Na realidade, nenhuma das duas hipóteses pode ser afirmada com 100% de certeza, pode-se estar associado à mudança climática, mas não tem como confirmar isso; precisariam mais estudos para dizer se isso está associado à mudança climática ou não.
IHU On-Line – Pode nos dar um panorama da situação dos estados atingidos pela seca no Nordeste? Quais são os estados que enfrentam uma situação mais crítica?
David Ferran – Segundo o Monitor de Secas da Agência Nacional de Águas – ANA, praticamente todos os estados do Nordeste estão com graus avançados de severidade de seca: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e parte de Alagoas estão com secas excepcionais, e todas as demais regiões enfrentam essa seca em maior ou menor grau de severidade. Esse fenômeno é decorrente dessa sequência de cinco anos de seca.
Quando ocorre só um ano de seca, os médios e grandes açudes conseguem segurar os níveis de água, mas quando há uma sequência de secas por repetidos anos, os grandes açudes não conseguem suportar essa variação de chuva reduzida, e ficam com pouca água. O estado do Ceará como um todo está com menos de 8% de água acumulada nessa época do ano e, talvez, se chover, os reservatórios só serão reabastecidos em março. Isto é, a chance de acontecer um colapso por falta de abastecimento de água em áreas urbanas, com mais de um milhão de habitantes, é bastante significativa.
IHU On-Line – Há risco de aumentar o desabastecimento de água para o consumo humano ainda neste ano?
David Ferran – Várias cidades – centenas – já estão sem abastecimento, tanto no estado do Ceará, como em outros estados, como Paraíba e Rio Grande do Norte. Em algumas cidades o abastecimento está sendo feito pelos caminhões-pipa. Nas cidades pequenas ainda é possível adotar essa prática, mas imagina quando essa situação se estender para as cidades médias e grandes. Se tiver mais um ano de pouca chuva, as grandes cidades também sofrerão; e como nunca enfrentamos uma situação parecida, não temos um parâmetro para imaginar o que acontecerá.
IHU On-Line – O que é possível fazer para amenizar as consequências desses períodos de seca, especialmente em relação aos reservatórios de água? Seria preciso adotar uma política de gestão dos recursos hídricos ou que tipo de política seria adequada para dar conta desse cenário de secas?
David Ferran – Primeiro temos que lembrar o histórico climático: isso nunca havia acontecido em 100 anos, e vemos que as consequências no interior são mais brandas em relação a anos anteriores, especialmente por conta das políticas de distribuição de renda, como o Bolsa Família, o Seguro Safra, e a construção de novos açudes etc. Essas políticas, bem ou mal, amenizaram a situação, mas, de agora em diante, se a seca se estender por mais um ano, a situação chegará a um extremo nunca atingido anteriormente.
Também é importante considerar que a situação do Nordeste é diferente da do Centro-Oeste e da do resto do país. No Nordeste sempre há de seis a sete meses sem chuva nenhuma, então, há o período de chuva e o período seco. Isto é, no Nordeste, as pessoas estão relativamente acostumadas a passar seis ou sete meses sem chuva, e quando vem o período chuvoso, elas armazenam água para passar os próximos seis meses. Já no restante do país não se tem um ciclo tão bem definido de seca e de chuva. Muitos estados do Sudeste e do Sul, se passassem seis meses sem chuva, entrariam em colapso, mas no Nordeste, como historicamente é recorrente, a população já se organizou de modo a tentar enfrentar a situação e tem reservatórios dimensionados para resistir a seis meses sem chuva.
IHU On-Line – Nesses períodos anuais de seca, quando não há seca extrema, os reservatórios conseguem dar conta do abastecimento?
David Ferran – Conseguem dar conta, mesmo os pequenos reservatórios conseguem resistir à seca de um ano para o outro. Agora, o problema é que como já são cinco anos de seca, os médios e grandes também não estão conseguindo garantir o abastecimento. O reservatório funciona com a máquina do tempo no sentido de que ele consegue transportar água de um ano para o outro; quanto maior o reservatório, durante mais anos ele consegue transportar água.
Esses reservatórios enchem pelo escoamento da chuva: chove, encharca o solo e a água escoa para os reservatórios. Agora, em anos que chove pouco, por exemplo, menos de 1% da água da chuva, em todo o estado, se transforma em água de açude. Por exemplo, nos anos de 2012, 2013 e 2014, dos 500 milímetros que choveu em média, somente cinco milímetros chegaram ao reservatório; já em anos em que choveu uma quantidade maior, de 800 a 900 milímetros, a eficiência da água que chegou aos reservatórios foi quatro, cinco, até 10 vezes maior.
Portanto, nesse ano em que choveu 500 milímetros, só escoaram cinco milímetros para os reservatórios; em um ano que chove mil milímetros – o dobro -, escoa 10 vezes mais, ou seja, 50 milímetros para os reservatórios. Então, quando chove pouco, a eficiência da água de virar água no açude é muito pequena, e quando chove um pouco mais, a eficiência é maior, porque o solo encharca, enche os pequenos açudes e as pequenas barragens, e essa água escoa para os grandes e médios açudes.
(EcoDebate, 14/11/2016) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]
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