jirau Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira: a marcha forçada sobre os territórios
Foto: www.franciscanosmapi.org.br
“O licenciamento do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira é um fio que nos leva até o processo decisório do capitalismo brasileiro, que se internacionaliza subalternamente, mas se internacionaliza”, frisa o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon.
As cheias do rio Madeira e os impactos gerados à população de Rondônia por conta das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio recolocam o projeto neodesenvolvimentista do país em discussão e demonstram que o “Brasil funciona como uma espécie de extensão da política industrial chinesa e, por isso, cumpre a função que convém claramente a uma ordem internacional dada, a qual o BRICS procura expressar”, adverte Luis Fernando Novoa Garzon à IHU On-Line.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o sociólogo explica as razões que levam o governo brasileiro a investir na atual política energética baseada, essencialmente, na construção de hidrelétricas. Segundo ele, “o projeto dessas hidrelétricas era uma espécie de síntese empresarial que se escorava no governo Lula, e esse pacto empresarial se traduziria, no final, em um pacto social de mais crescimento e mais emprego em troca de territórios livres de impedimentos. Ocorre que nesses territórios estão os rios, os minérios, o petróleo”.
Para ele, a política brasileira está “não só entregando recursos que podemos utilizar de formas diferenciadas de acordo com os padrões tecnológicos que adquirimos, mas perdendo lotes e blocos inteiros por décadas; essa é a grande questão”.
Garzon esclarece ainda que “todos os instrumentos governamentais e internacionais, aos quais o governo brasileiro vem se submetendo, impõem essa marcha forçada sobre os territórios em processo de acumulação por espoliação”. Contudo, adverte, o discurso político se apropriou do conceito de sustentabilidade, e enfatiza a geração de novos empregos por conta dos empreendimentos, levando a um processo de “despolitização” de parte da população atingida. “Por isso, a população perde a referência de longo prazo, referência dos interesses que estão em jogo. Um governo oriundo das lutas populares como o PT, deveria, no mínimo, colocar o tema em discussão para que pudéssemos debater”, frisa.
Luis Fernando Novoa Garzon é graduado em Ciências Sociais e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. É membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que relações estabelece entre a cheia histórica de 2014 no rio Madeira e as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau?
Luis Fernando Novoa Garzon – As cheias do Madeira foram uma espécie de “fresta”, de grande fissura em um modelo de apropriação acelerada dos rios Amazônicos como fontes de geração energética monopolisticamente definidas.
No Brasil se trata a Amazônia como o planeta das águas, por conta da sua grande capacidade de reservar e de disponibilizar água, mas, por trás desse discurso, se permitem expansões desordenadas das fronteiras econômicas, de acordo com a disponibilidade da região. A fronteira mineral, por exemplo, prosseguiu e radicaliza a sua marcha territórios adentro em toda Amazônia, e o mesmo se repete com a fronteira elétrica.
O que é mais cínico nessa construção é que a Amazônia já tinha passado por um ciclo que foi considerado desastroso nacional e internacionalmente. Depois disso, era possível imaginar que nós, brasileiros democratas, não permitiríamos que crimes e atrocidades iguais aos da ditadura e crimes ambientais pudessem se repetir. Mas o Madeira mostra que se repetiu a atrocidade. O mesmo método da ditadura militar é reproduzido agora em um discurso democrático e participativo e produz os mesmos efeitos desastrosos sobre os mesmos segmentos. A solução final é recriada em constante e eterno retorno. As soluções finais são recriadas, especialmente num país que quer se especializar em apropriação e processamento de recursos naturais.
Modelo neodesenvolvimentista
Há um financiamento em todos os níveis, em todas as esferas, ou seja, uma política deliberada sobre os desastres do neodesenvolvimentismo, independente de qual segmento político e de que alianças intercapitalistas e interempresariais esse segmento faria. O modelo neodesenvolvimentista é um modelo matricial que nos foi dado por uma trajetória de acoplamento, que vem a partir dos anos 1990 do mercado internacional de forma passiva, seja no arranjo mais hemisférico em um determinado período, isto é, norte-americano, seja em um processo mais planetário, mais subalternizado, com ramificações na América do Sul, África e Brasil.
Nesse sentido, o Brasil funciona como uma espécie de extensão da política industrial chinesa e, por isso, cumpre a função que convém claramente a uma ordem internacional dada, a qual o BRICS procura expressar. Ou seja, trata-se de uma ordem em que o Brasil é um espelho. Esse é o modelo chinês, que a China contrapõe ao velho imperialismo norte-americano, que vem sofrendo reveses nos últimos decênios da decadência europeia. É muito triste ver o Brasil ser jogado de um lado para outro. É lamentável ver exatamente o fracasso de um Brasil que poderia ter sido.
Então, em horas de desastres, como das cheias deste ano, temos de apontar esse modelo ao invés de fazer de conta que ele não existe, como tentam demonstrar os acordos internos. Que acordos são esses que impedem que se verifique com isenção e rigor aquilo que produziu enormes e irreversíveis danos a regiões consideradas, no discurso, regiões estratégicas de interesse nacional, de grande valia, de diversidade, de preservação?
IHU On-Line – Importante essa contextualização. Mas é possível afirmar que o complexo hidrelétrico teve alguma influência direta nas cheias por conta de alguma influência ambiental?
Luis Fernando Novoa Garzon – Essa contextualização que faço é para demonstrar que os estudos feitos para que fossem aprovados os empreendimentos do Madeira partiam de um planejamento econômico stricto sensu, o qual o governo Lula precisava demonstrar para os investidores — muito hábeis em investir em infraestrutura. Isso porque a infraestrutura é a pauta geral, ou seja, todas as frações do capital têm interesse em infraestrutura, porque ela é o “tiro de largada” que permite a construção de estradas, portos, aeroportos, ferrovias, hidrelétricas. Assim, o território brasileiro fica à disposição das apostas daqueles que estão nesse mercado e querem ocupar novas fronteiras no setor de matéria-prima.
Infelizmente, o Brasil é especializado em produtos primários, em converter biomas em elementos sintetizáveis e convertidos em mercadoria, em converter comunidades. As hidrelétricas do Madeira foram uma espécie de sacrifício, porque há tempo estamos tentando demonstrar como é falsa a tentativa de construir as hidrelétricas, porque os estudos técnicos não resistiam a uma avaliação minimamente rigorosa.
Internacionalização
O projeto dessas hidrelétricas era uma espécie de síntese empresarial que se escorava no governo Lula, e esse pacto empresarial se traduziria, no final, em um pacto social de mais crescimento e mais emprego em troca de territórios livres de impedimentos. Ocorre que nesses territórios estão os rios, os minérios, o petróleo. Ou seja, nós estamos não só entregando recursos que podemos utilizar de formas diferenciadas de acordo com os padrões tecnológicos que adquirimos, mas estamos perdendo lotes e blocos inteiros por décadas; essa é a grande questão. O licenciamento do Madeira é um fio que nos leva até o processo decisório do capitalismo brasileiro que se internacionaliza subalternamente, mas se internacionaliza.
Quem está em Jirau? A Suez, uma multinacional francesa, e a Odebrecht, a maior multinacional brasileira. Portanto, o Complexo do Madeira demonstra o desastre social, ambiental e financeiro de um pacto econômico político que ruiu e certamente está se repactuando. A questão é que no final das contas quem paga pelos custos e pelos ajustes desses pactos que são feitos e refeitos é a população, que foi desconsiderada desde o início do projeto. Ou seja, nós não temos os seguros que os senhores investidores do projeto têm. As populações que viviam em volta do Rio Madeira, no Brasil e na Bolívia, estão tendo de reconstruir suas vidas de uma forma absolutamente radical: elas têm de conviver em áreas urbanas com suas famílias, em situação de absoluta vulnerabilidade, para usar um termo aceitável.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a reeleição da presidente Dilma tendo em vista tais projetos hidrelétricos?
Luis Fernando Novoa Garzon – As hidrelétricas estão sendo construídas num contexto de despolitização e de apropriação capitalista em bloco. Nas audiências públicas, representantes do governo diziam que as usinas eram sinônimo de empregos. Por isso, a população perde a referência de longo prazo, referência dos interesses que estão em jogo. Um governo oriundo das lutas populares como o PT, deveria, no mínimo, colocar o tema em discussão para que pudéssemos debater.
Então, o governo da presidente Dilma demonstra um enorme desejo de manter o sacrifício inicial feito pelo primeiro governo Lula, de estabelecer esse pacto neoliberal existente, que estava entrando em crise no final do governo de Fernando Henrique, em troca de ter maior margem para ampliar políticas sociais. Foi feita uma combinação que foi eficiente enquanto durou o ciclo de commodities.
IHU On-Line – O secretário geral da presidência, Gilberto Carvalho, deu uma declaração pós-eleições dizendo que o governo não vai abrir mão do complexo hidrelétrico do Tapajós. Como vê essas declarações?
Luis Fernando Garzon – É triste. O Banco do BRICS coloca a infraestrutura como prioridade de seus investimentos e aportes. O Brasil também colocou o BNDES como suporte prioritário de seus programas de infraestrutura: o PAC3 e o programa integrado de logística. Então, todos os instrumentos governamentais e internacionais, aos quais o governo brasileiro vem se submetendo, impõem essa marcha forçada sobre os territórios em processo de acumulação por espoliação. O Brasil virou especialista nisso.
IHU On-Line – O projeto energético brasileiro está diretamente ligado ao BRICS, ou seja, é uma condição do BRICS?
Luis Fernando Novoa Garzon – É uma condição da China, primeiramente. Quando falamos BRICS, estamos diante do único país capaz de se contrapor à potência hegemônica dos Estados Unidos. Então, é como se nós estivéssemos no vazio da primazia norte-americana no final dos anos 1990 na região.
Em Porto Velho estamos vivendo uma grande sobra: o que fazer com os 40 mil homens que vieram construir as usinas? Não se pensa nas consequências, é como se injetasse fatores de desorganização social e territorial e deixasse que esses fatores aumentassem. No final, se repete a história da colonização de Rondônia: despejaram imigrantes do Centro-Sul em Rondônia e deixaram que a região se tornasse o estado que mais devastou a floresta Amazônica na história e, por isso, hoje lidera o ranking de queimadas. Nesse sentido, o Complexo do Rio Madeira reitera essa história trágica de ocupação de fronteiras com um discurso de participação e de sustentabilidade.
IHU On-Line – É possível estimar quantas pessoas foram prejudicadas por causa das cheias deste ano?
Luis Fernando Novoa Garzon – Nós fizemos uma contabilidade que apontou, em Rondônia, mais de 50 mil pessoas afetadas. Nem todas foram afetadas pela água, mas pelo isolamento, e não tiveram condições de permanecer no local.
A defesa civil fez um cálculo muito restrito e uma matemática muito medíocre. Em Rondônia as cheias atingiram três regiões do estado, a fronteira com a Bolívia e a região de Porto Velho. Então, a Defesa Civil cumpriu com esse papel vergonhoso de converter os afetados em desabrigados. Aquele que é afetado pelo modelo econômico vira, nas mãos do Estado, agora um desabrigado, objeto de atenção e de ajuda humanitária.
De imediato, foram retiradas três mil famílias, as quais são reconhecidas oficialmente pelos estudos, mas há um cálculo que se multiplica, apontando pessoas que não foram contabilizadas. Por isso, nossa avaliação é de que em torno de 10 mil pessoas foram impactadas diretamente pelas hidrelétricas, e as cheias multiplicaram esse número para 50 mil. Isso significa que boa parte dessa segunda contabilidade tem a ver com a primeira, e que justamente os que já foram inicialmente afetados pelas hidrelétricas, foram novamente afetados. E aqueles que estavam sob restrição, sob diminuição de suas atividades produtivas relacionadas ao rio, não são reconhecidos como atingidos.
Implicações ambientais
Estão barrando um enorme rio, que tem múltiplas vinculações com outros biomas, com culturas, com cidades, e esse barramento não é calculado nesses termos integrais. Calcula-se apenas aquilo que pode ser o dano mais agudo, que tem de ser sanado e tratado da forma como a defesa civil tratou, por exemplo. Então isso despolitiza as pessoas.
Tudo isso indica que existe um modelo de incorporação rápida da Amazônia, o qual tem a ver com a posição do Brasil em relação ao desenvolvimento. Por isso rediscutir a Amazônia é discutir a ponta do sistema que o Brasil adotou. Estamos diante de um processo que procura tornar invisíveis os laços de poder: os fios de decisão se tornam invisíveis e com isso fica muito simples inviabilizar aqueles atores coletivos que tinham saber sobre seu território e que poderiam transmitir o conhecimento tradicional. Mas a ciência brasileira também chancelou esse modelo.
IHU On-Line – Quais são as evidências de que há elevados níveis de assoreamento no rio Madeira e que isso pode resultar em uma cheia de proporções similares no próximo ano?
Luis Fernando Novoa Garzon – Essa situação é preocupante em relação aos próximos anos. Já nos indicaram que existe assoreamento no rio. Estudos foram realizados, mas ainda não foram divulgados. Os movimentos sociais de Rondônia e a academia independente dos laboratórios dos pesquisadores fazem uma reivindicação para que estudos sejam feitos e divulgados.
De todo modo, não se trata de discutir centímetros ou metros e taxas máximas de recorrência ou taxas mínimas de recorrência. Trata-se de tentar entender que há um saber acumulado, chamado “saber tradicional por convenção”, que percebeu uma mudança na dinâmica das cheias. Mas isso não deve ser de interesse dos senhores engenheiros, da Empresa Brasileira de Pesquisa Energética, do Ministério de Minas de Energia, que têm interesses mais urgentes, como estamos vendo nas recentes investigações policiais. Então, discutir planejamento territorial de forma democrática com um grupo que tem práticas similares a grupos de crime organizado é muito difícil. Nós lidamos com Camargo Corrêa de um lado e Odebrecht do outro. Então, dá para se ter uma ideia do que vai acontecer.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU on-Line)