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segunda-feira, 23 de julho de 2012

‘O maior ganho da Rio+20 é a tomada de consciência’. Entrevista com o médico e pesquisador Ary Carvalho de Miranda

Rio+20
O médico e pesquisador Ary Carvalho de Miranda, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp/Fiocruz), é cético em relação às decisões políticas oriundas de grandes conferências mundiais sobre meio ambiente. Para Miranda, as metas dificilmente serão alcançadas enquanto os Estados nacionais funcionarem na lógica dos interesses do capital. A esperança, a seu ver, reside na possibilidade de os movimentos sociais incorporarem cada vez mais a luta por uma sociedade sustentável. Ele explica por que nessa entrevista ao site Saúde Rio+20.
Qual a importância da saúde na Rio+20?
Miranda: Apesar da saúde não ter sido colocada no documento inicial da ONU, ela é um componente central em toda essa reflexão, uma vez que o modelo de desenvolvimento, principalmente a partir da segunda metade do século passado, tem provocado significativos impactos socioambientais e na vida das pessoas. Esses impactos estão relacionados, por exemplo, à contaminação do ar, associada à morte de mais de 2 milhões de pessoas a cada ano; à contaminação e escassez de água, que coloca mais de 1 bilhão de pessoas sem acesso adequado a ela; aos conflitos urbanos, que se expressam em diversas formas de violência, tais como acidentes de trânsito, responsáveis por mais de 1,2 milhão de mortes, por ano, em todo o mundo.
Isso sem falar nos impactos ambientais decorrentes da lógica da globalização econômica, que reserva aos países do hemisfério Sul, como o Brasil, a produção de commodities (agrícolas, minerais, madeira, petróleo) cujos processos produtivos geram enormes impactos ao meio ambiente e à vida das comunidades que vivem nesses territórios. Tal modelo, principalmente, a partir dos anos 1980 e, mais precisamente, a partir do final dos anos 1990, acentua as monoculturas agrícolas, como é o caso da soja, cujos processos produtivos utilizam grandes quantidades de fertilizantes químicos e agrotóxicos, que contaminam trabalhadores, o meio ambiente e os produtos consumidos pela população. Ademais, este modelo tem provocado, no Brasil, conflitos de terra decorrentes dos interesses dos grandes latifúndios, cujas práticas têm levado, sistematicamente, ao assassinato de lideranças dos povos tradicionais que defendem seus modos de vida, ameaçados pelos grandes empreendimentos. Além disso, a leniência do Estado com tais práticas é agravada com políticas desenvolvimentistas, como é o caso da construção de grandes hidrelétricas, com impactos socioambientais de diversas naturezas.
Quando o ambiente tornou-se uma questão relevante?
Miranda: Os movimentos de preservação do meio ambiente começam no final do século 19, mas neles a condição humana não está colocada. É mais uma defesa dos parques, dos pássaros e algumas espécies animais. Os conflitos socioambientais decorrentes do desenvolvimento econômico começam a ter mais visibilidade principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. A necessidade de recuperação da Europa e do Japão, destruídos pela guerra, faz acelerar os processos produtivos que, impulsionados pelo desenvolvimento da ciência, incorporam um número crescente e diversificado de tecnologias. Só para se ter uma ideia da escala dessa incorporação, entre 1950 e 1970, a produção de manufaturas quadriplicou e, se havíamos consumido, em 1940, 4 milhões de toneladas de fertilizantes químicos, em 1990, chegamos a consumir 150 milhões de toneladas. Neste período a produção de substâncias sintéticas aumentou 350 vezes. Foi um tempo em que a lógica fordista de produção praticamente se universaliza nas grandes potências e, já nos anos 1970, começa a se deslocar para os países “em desenvolvimento”.
Há alguns marcos geradores dos movimentos que procuram enfrentar os impactos socioambientais decorrentes desse desenvolvimento. O livro Primavera silenciosa, de Rachel Carson, de 1962, é um deles. Ele denuncia o impacto dos químicos no meio ambiente e gera tal clamor popular que leva à criação da EPA – a grande agência americana reguladora do meio ambiente – e a proibição do uso de DDT doméstico, nos EUA. Em 1968, é criado o Clube Roma, um grupo de empresários e de professores que, pela primeira vez, sistematiza um estudo que procura relacionar desenvolvimento, impacto sobre o meio ambiente e a vida.
Em 1972, publicam seu relatório, um livro chamado Limites do crescimento, em que trabalham um conjunto de variáveis como crescimento populacional, desenvolvimento econômico e impacto ambiental e chegam à conclusão de que do jeito que estava não dava para continuar: era preciso conter o crescimento populacional e o padrão de produção e consumo para conter a destruição ambiental. No entanto, não colocam em questão as razões do problema. Neste mesmo ano, em 1972, acontece a primeira conferência da ONU sobre meio ambiente, em Estocolmo, que foi importante porque pôs a crise ecológica na agenda internacional e induziu os países a criarem instituições que dessem conta de tal crise. As razões centrais que justificaram sua convocação continuaram omissas. Após aquela conferência o Brasil criou a Secretaria de Meio Ambiente, vinculada ao Ministério do Interior. Foi o primeiro momento em que se tenta sistematizar, oficialmente, a ideia de sustentabilidade.
E algo mudou desde então?
Miranda: De lá para cá avançamos em algumas coisas, como a maior participação social em função da crise ecológica, assim como também o maior interesse do mundo acadêmico pela pesquisa científica em torno deste tema, principalmente a partir da Rio 92. No entanto, principalmente a partir da crise do fordismo, iniciada no começo dos anos 1970, e com a crise financeira atual, a situação tem piorado. É a expressão das contradições entre a lógica do sistema capitalista, que se organiza em função da acumulação de riquezas por alguns, e as necessidades da vida humana. O relatório da FAO, que é um órgão da ONU, em 2007, fala que o mundo tinha 860 milhões de pessoas que sofriam de algum tipo de privação alimentar, seja desnutrição protéico-calórica ou alguma carência nutricional pontual.
Depois da crise das commodities, de 2008, esse quantitativo passou, em 2010, para um bilhão e cem milhões de pessoas. Além disso, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), hoje temos mais de 1 bilhão de trabalhadores desempregados ou no subemprego. Esse é o contexto em que se está discutindo economia verde e erradicação da pobreza agora, na Rio+20: desemprego em massa/subemprego, um sétimo da população do mundo com fome ou algum tipo de desnutrição, mais de um sétimo da população sem acesso adequado a água. Isto sem falar nas guerras desencadeadas pelos Estados Unidos e pela Otan, como foi o caso da Guerra do Iraque, da Guerra do Afeganistão e da Guerra do Líbano. Somente a Guerra de Iraque matou mais de 140 mil pessoas, fora a enorme destruição ambiental.
É uma ilusão pensar que vamos mudar este quadro sem colocar em questão a lógica do sistema, que se move em função do mercado, lócus fundamental da acumulação, que pouco tem a ver com a vida. Como se pode pensar em sustentabilidade sem discutir um sistema que na sua essência trabalha com a desigualdade, com a exploração? Outro problema é que se parte do pressuposto de que todos são responsáveis, tirando a responsabilidade fundamental dos países centrais nesse processo. Esse pressuposto está explícito no relatório Brundtland, que cunhou o conceito oficial de desenvolvimento sustentável, em 1987, e que foi incorporado na Rio 92. O processo de degradação ambiental incide com muito mais contundência nos países mais pobres, particularmente nas populações mais vulneráveis, não só desses países, mas também nas populações mais pobres das grandes potências. Os efeitos do furacão Katrina, em 2005, foi um exemplo. Dos quase mil mortos a maioria eram negros e pobres residentes em New Orleans.
Então o senhor não acredita que uma conferência internacional como a Rio+20 possa melhorar a situação das pessoas no planeta?
Miranda: Nos documentos da ONU, a essência do sistema está preservado. Acho que a Rio+20 é mais uma farsa dos Estados nacionais e dos organismos internacionais. As metas que se estabeleceram na Rio 92 e na Rio+10, esta em Joanesburgo, não foram alcançadas porque os Estados nacionais não cumprem seus acordos e não cumprem porque operam, predominantemente, em função dos interesses do grande capital transnacional. Além do mais, o sistema capitalista funciona ancorado em duas variáveis fundamentais: a exploração da força de trabalho e a escala produtiva, grande e sistemática, sem a qual não há sistema, porque não haverá acumulação. E diante disso, há os recursos naturais, um material finito cada vez mais degradado pelo padrão de produção de consumo e pelos descartes. A equação que não fecha.
Nada melhorou no cenário então?
Miranda: Os indicadores mostram que o quadro piora cada vez mais, do ponto de vista da crise ecológica e do ponto de vista da condição humana. Mas a partir da década de 80 começam a surgir uma série de movimentos sociais em função da chamada crise ecológica, e isso é importante porque vai dando um pouco mais de vigor ao enfrentamento. A Cúpula dos Povos é reflexo deste movimento. É a possibilidade de se discutir, a partir dos movimentos sociais e com a própria sociedade, o enfrentamento a esse modelo, assim como a construção de alternativas que sejam relacionadas com as necessidades da vida. O que está sendo colocado pela agroecologia, como alternativa ao agronegócio – um dos pilares que sustentam nosso modelo de desenvolvimento – é um exemplo de que podemos construir propostas reais à crise ecológica, que não sejam de interesse do grande capital. Penso que é um ganho importante do processo de tomada de consciência que vem ocorrendo na sociedade civil.
E o conhecimento cientifico acumulado não pode contribuir para influenciar governos a mudar posturas?
Miranda: Essa pergunta é interessante porque nos faz pensar sobre papel da ciência na sociedade que estamos construindo. A ciência moderna ganha vigor e protagonismo como referência da verdade a partir do século 17 e 18. O capital precisa de tecnologia e quem oferece tecnologia é o conhecimento científico. Vivemos em um mundo onde a ciência foi colocada a serviço do capital e do processo de acumulação, apesar de ter gerado também benefícios à sociedade. As crises do sistema tem trazido também a discussão do papel da ciência, não só em relação a seus propósitos, mas também em relação a seus próprios métodos.
A complexidade das tecnologias incorporadas aos processos produtivos e as incertezas com relação aos seus impactos desmistificam o poder absoluto das “verdades” científicas que lhe dão sustentação, até então avalizadoras da segurança das tecnologias. Os acidentes de Chernobil, de Bophal, e, mais recentemente, das usinas nucleares do Japão, por exemplo, tem gerado movimentos importantes que passam a questionar a chamada “Ciência Normal”, tal como formulada por Thomas Kuhn. Assim, o conceito de “Ciência Pós-normal”, de Funtowitz e Ravetz, entende que é fundamental ampliar os elementos que constituem o empreendimento científico, envolvendo a comunidade interessada, ecologistas, advogados, jornalistas, etc., criando as “comunidades ampliadas de pares”, necessárias para a transmissão de habilidades e para a garantia da qualidade dos resultados, tornando a ciência capaz de enfrentar os novos desafios apresentados por complexos problemas ambientais. Me parece o caminho para pensarmos uma nova ciência, principalmente com relação aos seus alinhamentos sociais.
E qual o desafio para os cientistas diante da crise planetária?
Miranda: Na lógica do que foi colocado, creio que o desafio está na edificação do quem sido chamado de uma ciência cidadã, uma ciência cujos métodos levem em consideração as comunidades afetadas por seus produtos. Uma ciência que não tenha a população apenas como objeto de produção de conhecimento, mas também como sujeito epistemológico, por ser quem deve se beneficiar do conhecimento produzido. Ou seja, uma ciência contra-hegemônica.
E não existem cientistas contra-hegemônicos?
Miranda: Já existem vários grupos de cientistas que começam a trabalhar na lógica da produção de conhecimento articulado com a sociedade. Na Fiocruz são poucos, mas, por exemplo, o trabalho sobre justiça ambiental feito aqui vocaliza nesse sentido. É um trabalho com uma metodologia que considera a sociedade não apenas como objeto de estudo, mas protagonista da produção desse conhecimento, tanto na elaboração dos projetos, como na apropriação de seus resultados. Isso confere à ciência uma outra característica, que possibilita que o conhecimento científico possa estar a serviço da população e da vida, e não a serviço dos interesses do capital.
No caso da saúde pública, como está essa relação?
Miranda: A saúde coletiva é um projeto que busca estar colado nos movimentos sociais. A construção do sistema de saúde no Brasil, com a formalização do SUS na Constituição de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde, em 1990, foi possível por ter obedecida a esta lógica. Tínhamos um sistema de saúde que estratificava a cidadania, onde o trabalhador que não tivesse carteira assinada não tinha o direito de ser atendido nos serviços públicos de assistência.
O SUS é uma grande conquista da sociedade brasileira, que foi possível graças a uma enorme mobilização social que teve a participação de diversos movimentos, sindicatos, associações de moradores, organizações corporativas, etc. O projeto que foi apreciado e aprovado no Congresso Nacional entrou, inclusive, como emenda popular. É claro que ainda temos muita coisa para resolver, como superar distorções relacionadas às iniquidades na oferta dos serviços, às várias expressões da desumanização, às dificuldades de acesso, etc. Isto num contesto em que cada vez mais, com a crise do capitalismo, a iniciativa privada quer reafirmar seus interesses por dentro do próprio SUS. Além disso, é fundamental que articulemos o SUS aos problemas decorrentes do modelo de produção e consumo, gerador da crise socioambiental, pois só assim colocaremos a saúde no centro de seus determinantes.
Qual o papel da Fiocruz nesse momento?
Miranda: A Fiocruz sempre cumpriu um importante papel na história da saúde pública de nosso país. Foi seminal, não só no campo da saúde, mas para todos os campos da ciência brasileira. Em sua trajetória histórica desenvolveu seu trabalho em função das necessidades de saúde da maioria da população brasileira, principalmente os segmentos mais excluídos. Do início ao final do século 20, destaco apenas dois exemplos que corroboram esta assertiva. As expedições dos anos 1900, quando o próprio Oswaldo Cruz coordenou missões na Amazônia, quando se ocupava de projetos relacionados às doenças, como a malária, que acometiam trabalhadores envolvidos na construção de obras desenvolvimentistas da época, como foi o caso da ferrovia Madeira-Mamoré, e a liderança na concepção e organização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, quando Sergio Arouca, ao assumir sua presidência, na condição de presidente da Fiocruz, faz com que o conjunto da sociedade tenha protagonismo nas discussões e em suas resoluções. O resultado foi texto que orientou a aprovação do SUS, no congresso nacional. Tem sido esse, nosso papel como uma instituição de Estado, que produz conhecimento científico, forma pessoas e aporta tecnologias ao sistema de saúde. Mas é preciso, também, que nossos projetos científicos, além disso, cada vez mais contemplem a população não só como objeto de interesse, mas também como sujeito em sua produção.
E a Fiocruz está indo bem nesse sentido?
Miranda: Temos ainda poucos projetos que se desenvolvem nesta lógica. Acho que nossos processos internos de discussão, tanto em nosso dia a dia, como nos momentos onde se definem propostas estratégicas para os rumos institucionais, como é caso do nosso Congresso Interno ou dos processos eleitorais, este deveria ser um ponto fundamental em nossas agendas.

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FONTE : entrevista realizada por Marina Lemle, da Agência Fiocruz de Notícias, publicada pelo EcoDebate, 23/07/2012

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