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sexta-feira, 8 de janeiro de 2021
Rio Doce: mais um ano se inicia sem suas águas recuperadas
Por Ana Lonava, Mongabay –
Em 5 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos de mineração Fundão rompe, derramando 50 milhões de toneladas de lama e resíduos tóxicos no Rio Doce, matando 19 pessoas, contaminando plantações, devastando a vida aquática e poluindo a água com lodo tóxico ao longo de 650 quilômetros do rio.
Passados mais de cinco anos, a limpeza realizada pela companhia não conseguiu restaurar o rio e a bacia hidrográfica. De acordo com moradores, a pesca e as plantações continuam envenenadas e menos produtivas. O acesso à água limpa ainda é difícil, e problemas de saúde sem razão aparente aumentaram.
Os habitantes do vale do Rio Doce estão frustrados com o que consideram uma resposta lenta ao desastre ambiental por parte da proprietária da barragem, a Samarco – um empreendimento conjunto da Vale e da BHP Billiton, duas das maiores mineradoras do mundo – e também por parte do governo federal.
Em torno de 1,6 milhão de pessoas sofreram o impacto inicial do desastre, mas o total de pessoas afetadas segue desconhecido. Relatos de complicações de saúde relacionadas a metais pesados continuam frequentes.
As águas do Rio Doce ainda apresentam uma cor marrom-avermelhada e turva a poucos metros da casa de Adomilson Costa de Souza. Até novembro de 2015, o rio era fonte de alimento e renda para ele. Agora, é uma lembrança diária do desastre que mudou sua vida. “Eu sempre vivi do Rio Doce. Qualquer peixe que eu pescava, vendia na porta de casa.”
Na maior parte do ano, Adomilson pescava em torno de 100 quilos de peixe por mês, vendendo-os a clientes que vinham de todos os cantos, alguns até mesmo percorrendo centenas de quilômetros em busca do produto fresco. Às margens do rio, ele criava animais e tinha uma plantação de bananas. A maioria de seus vizinhos no distrito de Pedra Corrida, em Minas Gerais, vivia da mesma forma. “Para nós, que nascemos aqui, o rio era tudo. Mas então veio a tragédia.”
A tragédia é o vazamento de milhões de toneladas de lama tóxica de uma barragem de rejeitos de mineração que se rompeu 300 quilômetros rio acima de Pedra Corrida. O desastre matou 19 pessoas soterradas no subdistrito de Bento Rodrigues e teve um impacto negativo em 39 municípios de dois estados. Os rejeitos da mineradora se espalharam por mais de 650 quilômetros desde sua fonte até o Oceano Atlântico.
Hoje, a calamidade é considerada o pior desastre ambiental do Brasil, e a responsabilidade pelo rompimento da barragem é atribuída diretamente à mineradora Samarco, um empreendimento conjunto entre a Vale e a anglo-australiana BHP Billiton – duas das maiores mineradoras do mundo – e às falhas de regulação do governo brasileiro.
A força assombrosa da onda de lama tóxica que atingiu Bento Rodrigues (MG) fez com que um carro atravessasse uma casa. A Samarco e alguns de seus executivos foram acusados de homicídio, mas o caso ainda não foi concluído. Foto: Romerito Pontes, sob licença Creative Commons / Attribution 2.0 Generic license.
As cicatrizes na paisagem ribeirinha
Nos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, a lama vermelha arrasou vilarejos, destruiu casas e contaminou o Rio Doce, o mais importante da região. Após a catástrofe, 11 toneladas de peixes mortos foram retirados do rio. Estima-se que 1,6 milhão de pessoas na bacia do Rio Doce tenham sofrido o impacto do desastre que destruiu a economia regional e os meios de subsistência das populações ribeirinhas.
Os impactos adversos permanecem e, mesmo hoje, uma camada espessa de lama tóxica cobre o leito do Rio Doce e as plantações e pomares às suas margens, deixando a água e a terra ao redor pintadas de marrom-avermelhado, fruto da mistura de rejeito de mineração e metais pesados.
“Foi um choque imenso para a região e a recuperação dos impactos ambientais e sociais tem sido lenta”, diz Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e coordenador do PoEMAS, um grupo de pesquisa que estuda o impacto político, econômico, social e ambiental da mineração.
Em Pedra Corrida, as pessoas dizem que não ousam comer peixes que vêm do rio e suas plantações não produzem tanto quanto antes. Muitos dos 2.500 moradores do distrito estão sobrevivendo com um cheque mensal de assistência da Samarco, a proprietária da barragem.
O rompimento da barragem de rejeitos foi um golpe duro para Adomilson Costa de Souza. Suas bananeiras, que cresciam perto da margem do rio, diminuíram de mil para apenas 150. Gradativamente, o número de peixes no Rio Doce foi aumentando nos anos seguintes ao desastre – mas Souza e seus vizinhos não pescam mais lá. “Sempre que pegamos algum peixe do rio, está todo manchado”, diz ele. “Às vezes, você abre o peixe e ele está podre por dentro. As pessoas têm medo de comprar. Não tem mais compradores para o nosso peixe.”
Pessoas, animais silvestres e domésticos, além de peixes, morreram quando a lama tóxica destruiu Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras comunidades. Foto: Romerito Pontes, sob licença Creative Commons / Attribution 2.0 Generic license.
O novo distrito de Bento Rodrigues ainda está sendo construído pela Samarco, mais de cinco anos após o desastre. Foto: Ana Ionova.
Recuperação paralisada
Ainda não está claro o que exatamente causou o desastre, mas as autoridades mostraram, a partir de documentos internos, que a Samarco e seus proprietários sabiam que a barragem poderia romper e arrasar a região. A companhia – ainda hoje sob propriedade da Vale e da BHP Billiton – foi obrigada a pagar bilhões em limpeza ambiental e indenizações às vítimas. Vinte e uma pessoas, incluindo o CEO da Samarco, Ricardo Vescovi, também foram acusadas de crimes, inclusive de homicídio, mas os processos judiciais ainda estão correndo. No entanto, parece que a Vale não aprendeu muito com o acidente, uma vez que não preveniu o rompimento semelhante da barragem de Brumadinho, em janeiro de 2019, no qual centenas de pessoas morreram.
Enquanto isso, as indenizações demoram a chegar às vítimas do Rio Doce. A Fundação Renova, criada pela Samarco para administrar as reivindicações relacionadas ao desastre, diz que até agora destinou R$ 10 bilhões para reparações e compensações pelos danos causados pelo rompimento da barragem. Mas um relatório recente da ONU revela que a companhia estava por trás de todos os 42 projetos destinados a combater as consequências do acidente.
Marino D’Angelo Junior está entre os milhares que ainda esperam por uma indenização, passados mais de cinco anos em que a onda de lama tóxica varreu a maior parte de Paracatu de Baixo, o distrito no qual ele viveu toda sua vida. A casa de Mariano foi uma das poucas que não acabou destruída pela onda de lama, mas suas terras foram submersas pelo lodo e suas plantações destruídas. “Quando olhei pela janela da sala, parecia que eu estava na lua: a paisagem era só lama. Nós sempre vivemos da terra. O desastre acabou com tudo.”
Antes do colapso da barragem, D’Angelo ganhava a vida criando vacas leiteiras. Ele vendia o leite por meio de uma associação de produtores que ele mesmo liderava e os negócios iam muito bem: a produção do grupo tinha aumentado de 400 litros por dia para 10 mil litros por dia em pouco mais de uma década. “Nós conseguíamos ganhar mais, colocar mais dinheiro no bolso”, diz D’Angelo. “Então o rompimento da barragem destruiu metade das propriedades de nossos produtores. Acabou com tudo.”
Marta de Jesus Arcanjo Peixoto mostra foto do neto, que ficou doente três anos depois que o rompimento da barragem despejou 90 milhões de toneladas de rejeitos tóxicos de mineração. Sua casa, em Paracatu de Baixo, foi destruída quando a barragem da Samarco se rompeu. As vítimas do distrito ainda não foram acomodadas em novas moradias. Foto: Ana Ionova.
Riscos de longo prazo
Com o passar dos anos, aumentam os temores dos moradores sobre os impactos de longo prazo à saúde causados pelo lodo de resíduos da mineração que ainda polui o Rio Doce e cobre terras antes férteis. A Fundação Renova alega que a água e o solo da região não estão mais contaminados, mas os moradores nas comunidades afetadas dizem que sua saúde está se deteriorando e que estão ficando doentes desde o desastre.
Estudos parecem corroborar essas alegações. No distrito de Barra Longa (MG), que foi bastante atingido, 77,9% dos moradores relataram problemas de saúde sem razão aparente desde o desastre, incluindo dores de cabeça, tosse, dor nas pernas e reações alérgicas. “Quem mora aqui não bebe essa água e não come nada que seja produzido na região”, diz Adomilson, referindo-se à comunidade de Pedra Corrida. “Então não adianta dizer que está tudo bem, eles não vão convencer a comunidade.”
Em Paracatu de Baixo, o rompimento da barragem foi um golpe duplo para Maria de Jesus Arcanjo Peixoto. A onda de lama varreu o bairro onde ela e sua família moravam há gerações, reduzindo sua casa a escombros e cobrindo com uma espessa camada de rejeito de mineração as terras onde ela criava vacas leiteiras. “As plantações não crescem mais como antes”, aponta, enquanto caminha em meio à lama vermelha que ainda cerca a carcaça de concreto que antes era sua casa. “A terra foi arruinada. É tudo lama agora.”
Dois anos atrás, um segundo desastre atingiu sua família: uma doença misteriosa atacou os pulmões de seu neto e o deixou preso a uma cadeira de rodas. “Até agora, os médicos não encontraram nada”, diz Maria de Jesus. “Ele tinha três meses quando a barragem rompeu. E toda a comida, o leite, o alimento das vacas – tudo vinha da lama.”
A Fundação Renova diz que o tratamento extensivo do Rio Doce ajudou a restaurar a qualidade da água, que agora é “similar a antes do rompimento da barragem”. A fundação diz que coleta três milhões de unidades de dados em 92 estações de monitoramento ao longo do rio, e que esses dados não mostram traços de metais pesados ou elementos tóxicos na água.
Contudo, um relatório recente de uma agência ambiental do governo, que ainda não foi publicado, mas ao qual a Mongabay obteve acesso a partir de uma fonte anônima, revela níveis elevados de uma série de metais no Rio Doce e em suas margens, e pede mais monitoramento da água e do solo da região.
Embora a Renova tenha gastado dinheiro para tratar da contaminação do Rio Doce, a maior parte das ações da fundação financiada pela indústria tem sido de “esforços paliativos” focados em monitorar a qualidade da água em vez de tratar o rio, de acordo com Milanez, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
“Eles estão colocando muito dinheiro nessas medições”, diz o pesquisador. “Mas, no fim das contas, as pessoas ainda estão expostas e os peixes ainda estão contaminados. Pode estar melhorando, mas é seguro? Esta é a grande questão.”
O Rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce, no distrito de Mariana (MG), é o palco de um projeto piloto que utiliza vegetação nativa para o tratamento de suas águas. Foto: Ana Ionova.
Novo caminho e nova esperança
As águas marrons do Rio Gualaxo do Norte atravessam suavemente os escombros de Bento Rodrigues – o distrito que ficava logo abaixo da barragem de rejeitos. O lugar foi totalmente destruído pelo rompimento da barragem, que matou 19 moradores e fez o restante fugir para terras mais altas pouco antes da torrente de lama avançar. A Samarco realojou todos os moradores sobreviventes, embora as memórias traumatizantes que eles carregam do dia 5 de novembro de 2015 permaneçam.
Agora, uma startup local decidiu limpar o Rio Gualaxo do Norte, alimentando a esperança de que pelo menos alguns danos ambientais locais possam ser revertidos.
Um projeto piloto financiado pela Renova está usando vegetação nativa e naturalizada para tratar a água e regenerar a vida aquática no Gualaxo, um dos maiores afluentes do Rio Doce. A mesma tecnologia já foi implementada com sucesso em outros lugares, inclusive em Londres, onde ajudou a limpar o Rio Tâmisa. Agora, ela está sendo testada em Mariana com a esperança de que possa ser usada para limpar a bacia do Rio Doce.
“O impacto [do rompimento da barragem] foi gigantesco sobre todo o ambiente aquático”, diz William Pessôa, diretor-executivo e fundador da LiaMarinha, a startup que desenvolveu a tecnologia de limpeza e que vem tocando o projeto desde agosto de 2020. “Mas a natureza tem essa capacidade de se regenerar. Nosso objetivo é ajudar a natureza a passar por esse processo mais rapidamente.”
O projeto ainda está no início, mas já há sinais de que as plantas estão ajudando a reduzir as partículas de metais pesados e a turbidez das águas, tornando-as mais claras e menos poluídas. “Hoje, a água já melhorou bastante”, diz Pessôa. “E vemos que tem potencial para melhorar muito mais.”
As comunidades estão encontrando outros caminhos inovadores para a recuperação. Em Pedra Corrida, Adomilson tem atuado em um pequeno projeto de aquicultura nos últimos três anos. Ele e outros pescadores, que antes tiravam o sustento do Rio Doce, agora criam alevinos em piscinas despoluídas até que os peixes cresçam o suficiente para serem vendidos.
“Hoje estamos criando nossos próprios peixes e vivemos com a renda da venda”, diz. “E soltamos alguns peixes no rio. Agora podemos devolver à natureza, em vez de tirar dela”. Por meio do programa socioeconômico, Adomilson conseguiu repor sua antiga renda, dizimada pelo rompimento da barragem. Agora, ganha cerca de R$ 2 mil por mês com o trabalho na aquicultura.
A Fundação Renova também lidera um projeto maior de pesca, com o objetivo de replicar esses resultados e ampliar o acesso da comunidade à aquicultura – ação bem recebida pelos moradores, que ainda sentem os terríveis impactos do desastre ambiental. Para Adomilson, que está ajudando a expandir o projeto de aquicultura, a esperança é que ele atinja mais pessoas em sua comunidade, dando-lhes a mesma chance de reconstruir suas vidas.
Marta de Jesus Arcanjo Peixoto segura das únicas fotos de casamento que conseguiu salvar antes que sua casa fosse varrida pelo lodo tóxico da mineração. Foto: Ana Ionova.
Imagem no Banner: O rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, cujos donos são a Vale e a anglo-australiana BHP, causou uma enxurrada de lama que inundou várias casas no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na Região Central de Minas Gerais. Foto: Rogério Alves / TV Senado.
#Envolverde
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