“O desenvolvimento sustentável fracassou, mas há alternativas”. Entrevista com Federico Demaria
IHU
Outro mundo e outra economia são possíveis. Ao menos é o que proclama o livro Pluriverso: Un diccionario del postdesarrollo (Icaria), que reúne uma centena de ensaios sobre as alternativas transformadoras do atual modelo de desenvolvimento predominante. “Em um momento em que o desenvolvimento parece inquestionável, existem povos do mundo que, sim, o questionam e estão vivendo de uma forma diferente”, explica Federico Demaria, professor de economia da Universidade Autônoma de Barcelona, um dos coordenadores do livro.
Acadêmicos, profissionais e ativistas (Vandana Shiva, Serge Latouche, Wolfgang Sachs, Silvia Federici, Nnimmo Bassey, Gustavo Esteva, Katherine Gibson, Maristella Svampa e muitos mais) participam dessa enciclopédia, com toda uma tentativa de resetar mentalmente nosso imaginário econômico, fundamentado em conceitos como produção, publicidade, dívida e obsolescência programada.
A entrevista é de Antonio Cerrillo, publicada por La Vanguardia, 26-02-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O que é esse livro?
É um exaustivo inventário das alternativas ao desenvolvimento. Diante dos problemas sociais e ambientais que sofremos, há uma resposta oficial, que consiste em exaltar a ideia de desenvolvimento sustentável, que basicamente é mais do mesmo, mas com algumas pequenas mudanças. E este livro argumenta que, em vez de uma única resposta, há muitas respostas, e que já existem no mundo. Por isso, falamos de pluriverso.
Oferece mais de uma receita?
No plano oficial, como as únicas soluções, propõem mais crescimento econômico, melhor inovação tecnológica, mercados de carbono e tudo o que já sabemos. Em vez disso, nosso livro diz que não há uma solução única. Não existe um universo único. O mundo é muito diferente e existem várias soluções, múltiplas alternativas. A isso chamamos de pluriverso. O nome vem dos zapatistas, que dizem que o pluriverso é um mundo onde cabem muitos mundos. É, se preferir, um hino à diversidade.
Como se ordenam as soluções nesse livro?
Existe um conceito dominante de desenvolvimento. É o que diz, por exemplo, que a ciência moderna é a única maneira de conhecer, a linguagem legítima, que o conhecimento indígena não serve para nada, que é inútil, e que o importante é o que a ciência diz. Contudo, nós mostramos as alternativas à ideologia do desenvolvimento como conceito dominante. E aí incluímos aspectos sociais, ecológicos e de gênero. E, ao final, propomos uma série de critérios para tentar diferenciar entre o que são alternativas e o que não são.
É um livro de críticas?
Não é um livro de críticas. A resistência dos movimentos sociais é importante, mas precisamos apresentar e criar nossas alternativas, divulgar nossas propostas, porque, caso contrário, não vamos a lugar algum. Não é um livro de críticas, nem é um livro de sonhos. É um livro de práticas transformadoras que já existem nos cinco continentes.
Como se organizam?
Há três seções. Na primeira seção, uma pessoa conhecida em cada um dos continentes, como Vandana Shiva, da Índia, por exemplo, nos atualiza sobre a razão do fracasso do desenvolvimento em seu continente. Em uma segunda seção, estão reunidas o que chamamos de falsas soluções, como são a economia circular, o desenvolvimento sustentável, as cidades inteligentes, a eficiência e a geoengenharia. São soluções que sustentam a ideia de que tudo deve mudar para que nada mude.
E na terceira seção, a maior, reunimos mais de 100 alternativas ao desenvolvimento. Pedimos a ativistas e intelectuais, sobretudo do sul, sua colaboração. Não queríamos que nos explicassem o sonho de um intelectual em seu escritório, algo que não cabia nesse livro. As alternativas que surgem nele têm uma presença territorial, estão enraizadas e têm movimentos sociais por trás. São experiências em marcha.
Que experiências você destacaria?
Apresentamos a experiência Vikalp Sangam, da Índia, que é uma confluência de alternativas. Centenas de comunidades que instalam aerogeradores e painéis solares, desenvolvem projetos de agroecologia e se organizam sob os princípios da democracia direta. Existem muitas experiências de viver, trabalhar, produzir, distribuir e consumir de maneira diferente, mas não têm visibilidade.
Na Índia…
Na Índia, foi criada uma rede desses grupos que tenta construir uma visão alternativa aos desafios como a pobreza, a desigualdade e as desigualdades de gênero. As propostas convencionais do discurso dominante não dão respostas às necessidades. O livro tem a virtude que possibilita uma convergência entre essas alternativas, para que possam dialogar entre elas. O decrescimento na Europa talvez tenha alguns pontos fortes, por exemplo, na ecologia, mas não tem a diversidade cultural ou essa sensibilidade que, sim, outras formas de conhecimento possuem, como é o bem viver na América Latina.
O ponto em comum de tudo isso é o decrescimento?
Não. O ponto em comum é que se questiona que o caminho a seguir, ou o horizonte comum, tenha que ser o atual modelo de desenvolvimento, tal e como o definem os países industrializados. Questiona-se a ideia de que o desenvolvimento é necessariamente ter que produzir mais, confiar em que a tecnologia ajudará você ou que o mercado é a melhor fórmula e reparará tudo … Está correto que muitas dessas alternativas fazem uma crítica, explícita ou implícita, a que o crescimento econômico seja a melhor maneira de atuar… Mas o decrescimento é uma das alternativas, não a única.
Quais outras soluções destacaria por sua potencialidade?
Além de Vikalp Sangam, da Índia, que é uma experiência enraizada no território, como disse, temos um equivalente semelhante no México, que é Crianza Mutua, ou na Catalunha, a Xarxa d’Economia Solidària, com mais de 300 empresas. E existem as experiências conhecidas dos zapatistas, em Chiapas, e dos curdos, em Rojava. Existem também alternativas nacionais como Querala e Butão e outras municipais como Marinaleda, Mendha Lekha, Longo Maï e Auroville.
Em que consistem as experiências dos curdos?
Os curdos tiveram muita dificuldade. Em todos os países, foram muito retaliados. São a maior nacionalidade do mundo sem um território próprio. O presidente do partido, Abdullah Öcalan, líder do PKK, que está preso há muito tempo, se inspirou na ecologia social de Murray Bookchin, partidário do municipalismo libertário. Em Rojava, 5 milhões de curdos adotaram um sistema de sociedade alternativa focado no confederalismo e na autonomia democrática, com a organização de uma economia democrática baseada na emancipação de gênero e na ecologia.
Isso implica que o processo de tomada de decisões sobre o que precisa ser produzido, como gerenciar os recursos e como distribuí-los precisa ser participativo e igualitário. Isso também inclui a coliderança, ou seja, que toda instituição seja dirigida por um homem e uma mulher.
São experiências, muitas vezes, com uma dupla dificuldade…
Há um capítulo do livro centrado nos aspectos da organização econômica, pois são povos que não possuem controle do território, sem um estado, em um contexto de guerra, e em um território também muito difícil do ponto de vista climático, com muitas desigualdades, que tentam avançar com a organização de cooperativas. E são casos de êxito. É verdade que foram criticados por seu envolvimento na luta armada. Nenhuma das experiências apresentadas neste livro está isenta de contradições, inconsistências e situações problemáticas. Mas isso também torna o livro interessante. Isso nos permite compará-las. O livro inclui um código ético. Se alguém diz que as mulheres são diferentes, não cabe nesse livro.
E qual o papel do feminismo no livro?
Existe uma perspectiva que está ganhando força na Espanha. É o que chamamos de sustentabilidade da vida, e é promovida por economistas feministas como Cristina Carrasco e Amaia Pérez Orozco. Essa visão abre as portas para uma convergência entre feminismo e ambientalismo, incluindo o movimento pela justiça climática. São dois dos movimentos com maior capacidade de mobilização e que possuem grande potencial para articular diferentes demandas de emancipação e transformação social.
Qual é o conceito de sustentabilidade da vida?
É uma proposta que coloca as pessoas e o planeta no centro da vida, em vez da produtividade. Abre a possibilidade de dar novos sentidos à vida. E, para fazer isso, levanta duas questões fundamentais: o que é uma vida que vale a pena ser vivida? E outra é: como vamos sustentá-la? Pensar em uma vida que vale a pena ser vivida não deve ser entendido apenas em nível pessoal, mas também social.
A sociedade nos diz que o que faz sentido é trabalhar, comprar, ter uma casa, um carro e pagar uma hipoteca. Mas, diante disso, temos outra opção, que é a de trabalhar menos, participar na política, compartilhar e desfrutar mais … E essa mesma abordagem poderia ser feita em outro plano. Quem são os partidários da independência? Que Catalunha querem para o futuro?
E, então, as feministas se perguntam como vamos sustentar a sociedade que queremos. Falam de “sustentar” em termos ecológicos e em termos de cuidados … Quem vai cuidar das crianças, dos idosos … Há uma potencialidade no ecologismo e no feminismo que é entrelaçada por essa ideia da sustentabilidade da vida. As alternativas que surgem em nosso livro são formas diferentes de enfrentar essas questões: o que é uma vida que vale a pena ser vivida e como a podemos sustentar (?). São propostas, não são ideais.
Alguém poderia dizer que são propostas distantes…
Sim. Alguém poderia dizer que são propostas distantes da vida a que estamos acostumados agora e, portanto, inalcançáveis. É algo que eu aceito, mas não acredito que as respostas hegemônicas, como a de desenvolvimento sustentável, tenham melhorado nossas vidas. O que queremos dizer quando falamos de vida? Que outros sentidos queremos lhe dar?
O que é o desenvolvimento sustentável? Uma filosofia? Uma política? Uma corrente econômica? Tem sido um sucesso ou um fracasso?
Após 30 anos de políticas que invocam o desenvolvimento sustentável, chegou o momento de fazer uma avaliação. Tem sido um sucesso ou um fracasso? Depende. Seus partidários alegarão que ainda não foi implementado e que não é possível ser totalmente avaliado. Se o considerarmos no contexto do relatório Brundland, dos anos 1980, acredito que foi um fracasso, pois, se você olha para qualquer indicador, o meio ambiente piorou nesses anos, ainda que certos indicadores específicos de alguns poluentes do ar possam ter melhorado. Mas sabemos que a crise ambiental piorou.
Alguém pode dizer de maneira provocativa que o desenvolvimento sustentável foi um sucesso porque seu objetivo não era enfrentar a crise ambiental, mas, sim, parar a radicalidade da crítica ecologista ao desenvolvimento e ao projeto de crescimento capitalista e produtivista que nascia com força nos anos 1970.
E essa crítica foi freada?
Nos anos 1970, ocorre uma crítica muito radical e parecia que iria atingir um alto grau de influência no plano das políticas públicas. E uma maneira de frear tudo isso foi a ideologia do desenvolvimento sustentável. Se nos anos 1970 se disse que a degradação ambiental se devia ao fato de os países ricos produzirem e consumirem muito, nos anos 1980, se disse que os pobres, como são pobres, degradam o meio ambiente e, portanto, o que precisamos é que os pobres fiquem mais ricos para que possam ser mais respeitosos com o meio ambiente.
O livro critica as falsas soluções…
O livro não pretende colocar sobre a mesa outras falsas promessas como o desenvolvimento sustentável. Às vezes, somos criticados dizendo que o que propomos não agradará. Acabei de ler um artigo em Nature Climate Change destacando uma perspectiva para 2100: se continuarmos com o crescimento econômico e as projeções atuais do IPCC, a probabilidade de interromper um aumento de temperaturas de 2 graus é de 5% e de pará-la em 1,5 grau é de 1%. E a perspectiva é um aumento de 3, 4 a 5 graus, o que é uma barbaridade. Verdadeiramente, pensamos que sem uma mudança radical de nossas sociedades, poderemos alcançar justiça social e ambiental?
Você também não gosta da chamada ‘economia circular’.
Não digo que a ideia de economia circular não sirva. Eu concordo com ela. Uma economia que dependa apenas do sol é uma economia circular, compartilho disso. Assim funcionavam as sociedades baseadas na agricultura de subsistência. Mas, na realidade, o que a União Europeia e a China delineiam não é isso. Por isso, assumimos o incômodo de revisar 10 ou 15 conceitos que para nós não são transformadores. Parece importante discutirmos e reconhecer a contribuição daqueles que fazem bem as coisas sob esse guarda-chuva, ainda que nos pareça que não são um guarda-chuva verdadeiramente transformador.
Não há crescimento indefinido, disse.
A ideia de um crescimento econômico indefinido, que por certo é o primeiro no pacto PSOE–Podemos, vai contra os outros objetivos de desenvolvimento sustentável propostos pela Organização das Nações Unidas. E, nesse sentido, o desenvolvimento sustentável colocou um véu sobre uma realidade: não é possível, nem tampouco desejável um crescimento econômico indefinido. O que importa para o bem-estar das pessoas é a justiça social e ambiental.
Como você vê o movimento ecologista atual?
Eu percebo um ambientalismo muito focado na mudança climática e que se esquece de outros assuntos. Temos que colocar a defesa do meio ambiente no centro do sistema educacional, algo que não vemos nas escolas, nem na universidade. Por exemplo, os alunos da faculdade de economia não estudam nada sobre o meio ambiente. Isso é normal?
A social-democracia incorporou melhor o desenvolvimento sustentável que os liberais?
A social-democracia tentou colocar sobre a mesa pequenas melhorias, nada a objetar. Mas, em termos absolutos, se queremos ser verdadeiramente ecológicos e ter uma economia que não comprometa outras populações no mundo, agora e no futuro, e que, ao mesmo tempo, uma distribuição da riqueza seja generalizável, isso é difícil. Os planos 100% renováveis que o Greenpeace mantém não estão claros. Há grandes discussões sobre se isso pode ser alcançado.
Se aceitarmos uma redução da demanda geral, não apenas de energia, mas também de materiais, e se nos países ricos reduzirmos nosso nível de vida material, será fácil a transição para um cenário sustentável, e isso também fará com que seja mais fácil que outras pessoas do mundo, que estão em condições de pobreza e desigualdade, adquiram nosso nível de riqueza.
E, finalmente, temos o New Green Deal…
Sou a favor, mas não deve ser para a economia crescer, mas para alcançar a sustentabilidade. Contudo, suspeito que o que a União Europeia e o novo governo têm em mente é caminhar para uma eletrificação de 100% e que essa eletrificação dependa completamente das energias renováveis, mas isso tem um problema.
Meus colegas Aljoša Slameršak e Giorgos Kallis estudam quanta energia precisamos para a transição ecológica e nos oferecem outro cenário. Ou seja, sustentam que sem uma redução na demanda de energia, será difícil alcançar os objetivos. Mesmo assim, admitem que o processo na Espanha pode ser positivo, pois envolverá o fechamento de usinas nucleares e centrais de carvão. É um começo, mas é preciso ir além. Nosso livro apresenta uma infinidade de mobilizações e práticas emergentes de muitas regiões do mundo. O pluriverso já respira…
(EcoDebate, 28/02/2020) publicado pela IHU On-line, parceira editorial da revista eletrônica EcoDebate na socialização da informação.
[IHU On-line é publicada pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos, em São Leopoldo, RS.]