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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O quadro de chuvas e enchentes no Brasil mudou. Precisamos mudar políticas e atitudes - Sérgio Abranches

O quadro climático brasileiro está mudando. Não importa muito se já é a mudança climática em curso ou uma sequência de anos anômalos. O fato é que na última década as enchentes se tornaram mais frequentes e já tivemos duas secas monumentais na Amazônia. Isso sem pesquisar a contabilidade de tempestades, tornados e ventanias.

Alexei Barrionuevo, do New York Times, conversou com Margareta Whalstrom, secretária geral assistente da Estratégia Internacional para Redução de Desastres da ONU, e ela disse que “nos últimos anos o aumento da frequência de enchentes e ventos fortes se tornou a norma no Brasil”. Não é mais exceção, como no passado. Para ela, a “escolha política que temos hoje não é tratar desastres como eventos que vem e vão, mas decidir que se planeja para eles e tomar consciência de que eles têm altos custos”.

Barrionuevo falou também com Debarati Guha Sapir, professora da Universidade Católica de Louvain, em Bruxelas, que dirige o Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres, associado à Organização Mundial da Saúde. Ela disse que o Brasil enfrentou 37 enchentes desastrosas desde 2000. Sete delas ocorreram em 2009 e quatro em 2008. Desastres ligados a chuvas intensas afetaram perto de 5 milhões de pessoas nas últimas duas décadas.

A frequência de eventos naturais extremos e as perdas a eles associados aumentou por toda parte. Robert R.M. Verchick, diretor do Centro de Legislação Ambiental e Uso da Terra da Universidade de Loyola e autor do livro “Enfrentando Catástrofes: Ação Ambiental em um Mundo Pós-Katrina”, disse a Andrew Revkin, do blog Dot Earth do New York Times, que “não há mais como questionar que a exposição humana a desastres como terremotos, queimadas e enchentes está aumentando. A ONU relata que dos 10 desastres mais mortais entre 1975 e 2008, metade ocorreram depois de 2002. Em 1975 o total de perdas econômicas foi menos de US$ 25 bilhões, agora ultrapassa os US$ 150 bilhões. Dos milhões que morreram em desastres, a maioria vivia em países em desenvolvimento.”

Vários países passaram por essas experiências recentemente. Os mais pobres enfrentaram catástrofes humanas de grandes proporções. O desastre associado ao Katrina mostra que mesmo em países ricos e desenvolvidos os sistemas de alerta e prevenção podem falhar. As cenas de New Orleans em muito se assemelham àquelas que se vêem em países mais pobres. Mas, em outras situações extremas, os sistemas funcionaram muito melhor. Na maioria das vezes os sistemas de alerta, prontidão e prevenção funcionaram e reduziram ao mínimo possível as perdas humanas. Essa é a nossa diferença, hoje, com a Austrália, onde as mortes não chegaram a 50. Só na região serrana, este ano, podemos ter perdido perto de 1000 pessoas, levando-se em consideração estimativas de pessoas desaparecidas nas três cidades. A contagem dos corpos já passou de 600.

Sapir disse a Barrionuevo que o Brasil não pode ser listado entre os países pobres. Nosso problema não é de falta de qualificação tecnológica ou de recursos. “Se grande número de pessoas ainda morre em enchentes, não é um bom sinal”, alerta. Significa que as autoridades públicas não vêm a gestão de enchentes e desastres associados a fenômenos naturais em geral como prioridade. O que faz a diferença entre nós e a Austrália é o grau de prontidão e as políticas de gestão de desastres.

O meteorologista e blogueiro Jeff Masters fez uma análise dos dados de temperatura da superfície do mar na costa sudeste do Brasil, no período das chuvas torrenciais que atingiram a região serrana. O que ele encontrou foram as segundas temperaturas mais altas registradas desde 1900. Segundo ele, “chuvas recorde são mais prováveis quando as temperaturas da superfície do oceano perto das regiões de concentração de umidade estão em níveis muito elevados”, por causa da maior evaporação. O exame dos dados do Headley Center, do Met Office do Reino Unido, mostrou que as temperaturas na superfície do mar na costa brasileira próxima à região serrana estavam 1,05 C acima da média, em dezembro passado. “Só em 2007 com temperaturas 1,21 C acima da média as temperaturas do mar em dezembro estavam mais quentes”, escreveu em seu blog.

O G1 mostra, hoje, que a média de precipitação em São Paulo, nos primeiros 17 dias de janeiro, já chegou a 356,4 mm. Ela supera em quase 50% a média de 239 mm esperada para todo o mês. O recorde histórico é de 481,4 mm, registrado pelo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) em 1947. Mas, os dados do Inmet, segundo o G1, mostram que, nos últimos dez anos, apenas 2001 e 2007 tiveram índice menor do que o esperado para o mês. Nos últimos 30 anos, apenas oito ficaram abaixo da média.

Quando se tem registro de recordes sucessivos, que diferenciam o presente do passado, não se pode imaginar que seja obra do acaso ou um fenômeno discreto, desses que acontecem de vez em quando e não se repetem. Deve-se encará-los como mudança de padrão, de tendência, e mudar políticas e atitudes, para se adaptar a esse novo quadro.

O ministro Mercadante me disse que “mudou o clima, mudou o ciclo hidrológico”, portanto é preciso mobilizar novos esforços e tecnologias para enfrentar o desafio. Essa é a atitude que se espera das autoridades. O ministro anunciou, ontem, que o sistema de prevenção e mitigação de desastres que pretende implantar levará quatro anos para estar completamente implantado. Foi criticado por isso. Claro, precisamos de urgência. Mas o problema é que nada se fez nos últimos 20 anos. Este é o primeiro governo que monta uma equipe capaz de implantar o sistema. Começando do zero, vai ser preciso tempo para sua montagem. É o preço que o país paga pelo fato de as autoridades federais, estaduais e municipais não terem encarado como prioridade preparar o país para a ocorrência mais frequente de eventos extremos com alta probabilidade de se tornarem uma tragédia.

E não bastará o sistema de alerta e prevenção. É preciso criar uma cultura na máquina pública e na sociedade de prontidão e pronta ação. Quando se dá o alerta, é preciso que ele seja levado a sério, todas as providências sejam tomadas, mesmo que ele não ocorra.

Margareta Walstrom disse a Alexei Barrionuevo que a Austrália não tinha enchentes severas desde o começo dos anos 1970. Mas ciclones anuais e enchentes de menor gravidade levaram as autoridades a desenvolver sistemas de alerta precoce e instruções de evacuação das quais os residentes das áreas de risco são frequentemente relembrados. Também ajudaram a minimizar as perdas infra-estrutura adequada de drenagem e habitações de melhor qualidade, ela disse.

Precisamos repensar nossos comportamentos públicos e privados. Não podemos deixar que o trauma de hoje seja apenas mais um episódio que todos esqueceremos – menos os que perderam seus entes queridos claro – e só venhamos a relembrar na próxima catástrofe. É preciso que o governo implante de fato o sistema de prevenção. Os estados e municípios têm que tomar medidas novas e permanentes. A sociedade e a mídia têm que cobrar hoje, amanhã, no ano que vem. As cidades não podem ser construídas como se nada houvesse acontecido, mas redesenhadas com base no diagnóstico do que aconteceu. Perdas dessa magnitude deveriam nos fazer levar mais a sério os alertas da natureza, os exemplos dos outros e as duras lições das sucessivas tragédias que temos vivido.
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FONTE : análise originalmente publicada por Sérgio Abranches no Blog ecopolítica. (EcoDebate, 20/01/2011).

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